Talvez não haja como separar a segunda da primeira coisa... e na verdade talvez o montanhismo seja a forma mais extrema de esportes de endurance. Pois se temos provas de longas horas, no alpinismo extremo temos provas de vários dias. Ataques de 24, 36 horas ininterruptos, ou então com pernoites ao relento no meio da montanha, minimalistas em tudo, pois ali peso é fundamental.
Desde sempre que minha paixão é o endurance, as longas distâncias. A segunda ou terceira prova de corrida foi uma maratona. A primeira competição mais séria foi uma corrida de aventura de 13 horas. Mas isso não começou ali. Na verdade começou antes, em travessias a pé, escaladas sem noção nos Andes e depois em incursões por aí, e a corrida derivou disso, e não o contrário. Só que uma coisa reforça a outra.
As provas e os treinos são a forma mais fácil de manter o contato com esse estilo de existir. É muito mais fácil encaixar 1 ou 2 horas de atividade intensa na semana do que uma travessia ou montanha no fim de semana. Só que tem uma chama acesa que é atiçada de tempos em tempos, às vezes com intervalos bem longos, mas está ali.
E agora de alguma forma estou vendo esses dois caminhos se cruzarem. Acabou que tudo convergiu para que eu me inscrevesse no Cruce Colúmbia, e essa mistura de montanha com corrida está me deixando mais louco do que o normal. Claro, pra uma mente possuída e perturbada pelo endurance como a minha parece que nada pode piorar, mas pode.
Daí temos a escalada em agosto. Retomar o contato com isso, passar a pesquisar e ver que a coisa evoluiu absurdamente de uns anos pra cá é um grande barato. O esporte tomou conta da montanha. Alpinista agora é atleta. Treina com estrutura para isso, não é só mais sair pra montanha sem hora pra voltar. O expoente máximo dessa mistura é o Killian Jornet, mas tem toda uma nova geração fazendo história. Ueli Steck, por exemplo, parecia a pessoa mais louca que poderia existir. Vários e vários atletas tem feito coisas inimagináveis nos Alpes e todas as grande cadeias de montanha do mundo. O Himalaia está sendo reinventado (apesar do estupro do Everest).
Mas talvez isso não seja tão novo assim. Como em quase tudo, as coisas são movidas a ciclos e uma novidade quando bem esmiuçada vem como uma antiguidade vestida em roupas novas.
O Messner sempre foi um atleta. O segredo dele não estava na técnica, que era por si só impressionante, mas na resistência física extrema. A velocidade foi o que o manteve vivo, o que lhe deu fama e espaço numa era recheada de ícones europeus saindo da era de ouro do alpinismo, muito mais capazes tecnicamente do que ele. Mas ele abriu um novo mundo apenas com a velocidade e a loucura solo.
Escalou a face norte do Everest absolutamente sozinho, em 2 noites. Normalmente do campo base até o avançado se leva de 6 a 8 horas em 25 km de geleiras e morainas, mas ele chegou até o colo norte desde o base em bem menos tempo que isso. Não aconteceu de graça. Lá em 1970 e rolha ele já treinava, era patrocinado pela FILA e vivia correndo pra cima e pra baixo quando não estava nas montanhas, tinha um fisiologista o acompanhando, estudava nutrição. Igualzinho aos atletas de endurance de hoje :-). Quando terminou o que tinha pra fazer nas montanhas direcionou o canhão para os grandes desertos e cruzou todos eles, os pólos, tudo movido à pernas.
Obviamente não se sabe onde isso vai parar, mas é visível que cada vez mais os limites são expandidos, nas provas e nas montanhas. Os caminhos se cruzam mais do que se imagina. Preparação física, psicológica, análise de riscos, imprevisibilidade, as semelhanças são muitas mas na montanha as consequências normalmente são muito mais sérias. E isso amplifica em muito a percepção de quem se mete nestes ambientes.
Não sei se por isso tenho essa fixação por provas misturadas com ambientes mais agressivos, selvagens. 70.3 de Pucón, Norseman. Maratonas em desertos, Cruce de los Andes. Ultras são uma forma de fazer rápido o que normalmente fazíamos em dias. Fizemos já várias travessias na região de Urubici e São Joaquim de mais de 3 dias, onde não percorríamos mais de 40, 50 km. Só o Desafrio tem mais que isso.
O Cruce vai passar por lugares onde em 1999 eu fiquei perambulando sozinho por duas semanas. Na época nunca imaginaria ir lá pra correr, e agora praticamente não imagino ir lá e não correr.
Talvez seja toda essa facilidade das mídias sociais, internet, blogs e o escambau que nos bombardeiam de novidades, mas é uma novidade que se tem que cavar. Não está na grande mídia. E aí eu fico cada vez mais interessado em misturar as duas coisas. Subir montanhas correndo, correr em montanhas. Tudo junto ao mesmo tempo agora.
No início dos anos 90 a fixação era fazer a volta a ilha de Santa Catarina. Não A volta à ilha atual, a corrida, mas uma caminhada saindo do extremo sul e chegando no extremo norte, totalmente auto-suficiente só com o que tínhamos na mochila. Acho que a de 1994 fizemos em 4 dias de chuva ininterrupta. Naquela época ficávamos sabendo dessas demências pelo jornal de papel, e tínhamos que caçar o telefone do louco pra buscar mais informações com ele. E o praias e trilhas faz exatamente o mesmo percurso em pouco mais de 11 horas :-). Tudo misturado, e agora eu acho que tô entendendo o porque.
Treinar pra ir pra montanha, ir pra montanha pra me manter treinando. Correr pra competir e competir pra treinar, para poder ir sempre. Em resumo, estar sempre 'pronto' para a próxima coisa. Esse texto está ficando uma mistureba de dar gosto.
Acho que é pelo avançado da hora. De novo vou ficar acordado até as 2 da manhã para fazer a reserva online do refúgio de montanha do Mont Blanc. Parece o Ironman. Pior até, ontem as vagas acabaram em 3 minutos. E isso me lembra outra coisa: a loucura mundial está aumentando. Tudo tem as inscrições esgotadas, cada vez mais rápido.... As coisas se banalizam e surge alguma coisa ainda pior para substituir a falta de endorfina. Já postei uma
WishList de provas aqui... comecei a caçada !
As duas coisa exigem que se queira abraçar a dor, o sofrimento e o ardor nas pernas do mesmo jeito. Nunca fui muito de escalada técnicas, pra mim quanto mais longa a caminhada, a subida, os pedregulhos, melhor. Não consigo ficar num problema esportivo ou de boulder, prefiro clássicas, alta montanha. Nas corridas ? Igual: provas longas, quanto mais complexa melhor. Apesar de correr algumas provas curtas, que são necessárias, a cabeça está nas longas.
Sei lá viu, acho que tô viajando demais...