quarta-feira, 12 de abril de 2017

Volta à Ilha em dupla 2017 - sempre tem uma primeira vez

É muito bom chegar ! Mas pra isso é preciso largar !
Corri a volta à ilha pela primeira vez em 2003 e depois mais 6 vezes, mas nunca em dupla. Quando a organização liberou as duplas meus amigos de equipe Hélio e Fabiana se meteram na enrascada e eu corri em octeto acompanhando-os. Vi os estragos sofridos e naquela época a dupla tinha um D estampado no número para identificá-las. D de Doente, Demente, Desmiolado, Doido, etc. Achei tudo muito difícil mas ficou a vontade de um dia fazer também.

E aí as coisas foram indo pra rumos distantes da volta à ilha, que nos últimos anos não corri por atrapalhar um pouco a preparação para o Ironman Brasil no final de maio. Em octeto atrapalhava, mas em dupla talvez não. Seria legal tentar.

Tudo começou quando em janeiro o Gian Carlo me convidou para correr com ele. Ainda não inscrito no Ironman de maio e após o Fodaxman, o desafio veio bem a calhar. Finalmente correria a volta em dupla, uma encrenca das grandes na minha terra, palco de inúmeras provas, eventos e desafios. A ilha todinha pra dividirmos só em dois. Tudo nosso ! Depois me inscrevi para a ponta do papagaio, trail beach run de 30 km, que serviria de treino. E então veio a tentação. A Fetrisc tinha vagas para atletas federados e fui confrontado com a possibilidade de fazer o Ironman 45 dias depois da volta à ilha. Tinha dois dias pra decidir e adivinha o que aconteceu ? Conversei bastante com o Roberto, queria as duas provas, por mais incompatíveis que fosse. E ele como sempre aceitou o desafio de pensar em como resolver a encrenca: me deixar afiado para o Iron e ainda assim em condições de correr a volta decentemente sem me destruir no processo. E deu muito, muito certo. Mestre é mestre.

Começando a falar da prova, já perto da largada... acordei 4:05, tomei dois expressos e comi uma banana. A pizza da noite anterior ainda estava em processo de absorção e então fui pra beira mar de Uber tomando um gatorade. Lá rapidamente achei o Gian aquecendo, encontrei o Sr. João, sogro dele e o xará Rafael, que fariam o apoio e seriam simplesmente essenciais ao longo do dia.

Momentos antes da largada
O clima estava perfeito e a previsão melhora ainda, bem longe do maçarico solar do ano passado. Mas caiu uma chuva forte na largada, que ficou mais forte ainda quando passávamos pelo koxixos sem sinais do Gian, já lá na frente.

Seguimos para a Decatlhon onde eu correria o segundo trecho ainda a noite, e fiquei confabulando com a Débora que deveríamos ter headlamps pra correr na chuva à noite na contra mão da SC-401. Fiz uma visita preventiva ao banheiro, aqueci levemente e comi outra banana. Fui alinhar e logo veio o Juan voando. Mais alguns atletas e então o Gian chegou e zarpei rapidinho.

Sem preparação específica minha, tínhamos pretensão de terminar bem a prova, então saí bem moderado e racional debaixo de chuva torrencial. Mantive o ritmo muito constante e logo começou a amanhecer e parar de chover. Cheguei em santo antônio no meio da muvuca toda e o Gian seguiu.

The Flash chegando no trecho em santo antônio :-D
Um trecho feito, faltam 7. Foi tranquilo e saí inteiro. Fui pra Daniela sofrer a espera. Com o barco no meio do trecho, o tempo era indefinido e fiquei uns 20 minutos indeciso entre ir no banheiro e esperar a troca. Esperei e saí correndo para chegar logo ao banheiro lá de jurerê. Uma trilhinha muito boa marcou o fim do asfalto, o primeiro foi o único totalmente asfaltado dos meus trechos. Logo saí em jurerê e segui ritmado até a troca. Mais um trecho fácil de apenas 5 km. Pronto, estava aquecido e bem acordado.

Forte de jurerê, trilha e história
Saímos rápido para a cachoeira enquanto o Gico se mandava pelas praias, não sem antes passar no morro de canajurê (pensei agora e vou batizá-lo de morro maldito do Ironman). Não o vimos antes dele entrar na praia, o que mostrava que o ritmo estava bom.

Lá eu esperaria poucos minutos pra me mandar para o meu terceiro trecho, o único do dia que eu não conhecia, a trilha até a praia brava. Larguei em ritmo de cruzeiro, até então estava correndo todos os planos a 4:20, areias duras a 4:30-40, mas ali tinha um leve vento e fui mais lento na praia, e então engatei de novo no ritmo do asfalto horizontal. Tudo ainda muito tranquilo, seria muito fácil me enganar. Sempre é em provas muito longas, e o exagero no início cobra o preço no final. Mas o final sempre é duro, o que abre a dúvida do quanto socar quando ainda estamos bem. A eterna dúvida entre o endurance e a velocidade.

Até então estávamos embolados com muita gente, sem a menor ideia de qualquer coisa relacionada a posição na prova. O xará me deu uma água no começo da lagoinha do norte e depois me alcançaram de novo no pé da trilha, onde peguei meus trekking poles para fazer a subida. Foi uma ideia de última hora que adicionou descargas de adrenalina na descida e um bom alívio pros cambitos na subida: engatei a reduzida e subi 4x4, passando 3 atletas logo na primeira rampa. No topo, corri com os bastões na mão, e na descida resolvi usar a técnica desenvolvida no terceiro dia do El Cruce 2014, onde descemos 1500m de uma vez só. Despenquei trilha abaixo dando passadas de 2 metros, pulando pedras apoiado nos palitinhos de alumínio. Que delícia ! O Go Run Ultra Trail foi perfeito na prova toda, mas naquela trilha foi brilhante. Nenhum escorregão, virada de pé, nada.

Muitos me perguntaram se não era arriscar o Iron fazer a volta em dupla. Arriscar significava desde comprometer os treinos até me quebrar ou desenvolver uma lesão. Claro que tinha risco, mas eu não pretendia comprometer o Iron. Então fui no limiar do possível, me jogando mas com controle, forçando mas sentindo.

Por falar em sentir, senti algo a prova toda, menos no último trecho. Há pouco menos de um mês contraturei feio a panturrilha direita, e aí sobrecarreguei o aquiles. Treinando em cima disso, que levou duas semanas pra passar, apareceu uma dor um palmo abaixo da virilha, dentro da coxa. E então na semana da prova senti o quadríceps da coxa esquerda num treino de Vo2max na bike.

Assim, ali pela subida a virilha começou a doer, mas não deu sinal na descida ou planos. Nos planos sentia um pouco a coxa esqueda, mas principalmente na descida. Parecia que iria dar uma caimbra a qualquer momento, mas não deu nada o dia todo.

E assim cheguei na brava 1h1min depois de largar no meu terceiro trecho. Enquanto o Gico se divertia na trilha pros ingleses, nos mandamos de carro num trecho tenso. A previsão era de 25 min e o gps dava 21 de estimativa. Como me planejei muito pouco, não tinha ideia dos trechos e ali me ocorreu que despencar numa trilha e sentar no carro pra largar em 20 min não seria muito bom.

Trilha da brava

Chegada na brava, bastões na mão e bastão da prova já retirado do pulso
Bebi quase um litro de água de coco no carro e quando cheguei na praia não deu 2 min e o Gico apareceu, foi na estica ! E larguei todo empenado. Sensação horrorosa de não ter controle das pernas, fiquei meio perdido com aquilo, correndo a 5:30 na areia dura dos ingleses com um baita esforço.

Final dos ingleses
Trilhas de dunas entre ingleses e santinho.
Fiquei com medo ao pensar que poderia ter que correr a trilha do MD santinho... Ufa.
Só perto das dunas as pernas soltaram, corri até o santinho e então no restante da praia saiu um ritmo mais decente. Cheguei acabado. E apavorado, pois era apenas o quarto trecho e um trecho minúsculo e fácil, por sinal.

Santinho
Novamente foi na estica até o moçambique, mas levou 35 min e consegui comer e beber bem. Fiquei massageando as pernas com gel de arnica, tentando descansar. Uma vez na transição, fui alongar numa árvore acima da praia e comecei a me sentir melhor. Me estiquei todo, bebi gatorade e então o Gico chegou falando pra 'relaxar'. Entendi que a praia estava uma porcaria.

Eu adoro o moçambique ! Já andei e corri aquela praia toda em treinos, travessias e provas, nos dois sentidos. É selvagem, é linda e espetacular. Um oásis perto do crescimento desordenado de Florianópolis... mas eu odeio aquelas areias quando estão fofas com maré alta. Então é uma relação complexa.

Comecei forte e logo estava ofegante tentando achar um lugar decente pra correr, que só achei a 1,5 km do final. Que trecho duro ! Moeu legal as pernas, e entreguei o trecho para o Gico dobrar até o campeche novo. Por estarmos com um carro só combinamos que ali ele dobraria e eu correria o sertão. Seria erro certeiro tentar entrar na joaquina pra chegar no campeche novo antes do corredor.

Fiquei sequelado naquele trecho. Mas logo respirei e vi o Duks. Fui falar com ele e ele disse que estávamos em 5 a pouco tempo da quarta dupla. Opa, que interessante ! Pra quem não esperava nada, era bem legal. Mas é uma M, pois comecei a contar tempo, calcular ritmos e monitorar a dupla adversária. Saindo dali tomei 600 ml de caldo de cana e seguimos para o campeche, agora finalmente tinha tempo ! Chegando lá o João até achou que estava errado. Não havia nenhuma van, nada de muvuca. Os banheiros químicos estavam intactos, não tinha gente na praia fora os staffs.

Fui lá ver e realmente só tinham passado 3 equipes. Que estranho... E então achei um posto de salva vidas. Fui lá em cima ficar na sombra e deitado de pernas pro ar, monitorando o horizonte ao longe de uma posição privilegiada, procurando por qualquer sinal do meu parceiro lutando com as areias.

É preciso aproveitar toda oportunidade de descanso nessa prova

Mais uma largada, agora no campeche. Foram 8 !

Quando ele veio, saí empolgado com o descanso e areia dura. Não vi dores no começo, mas logo a coxa direita começou a empedrar. Provavelmente pelo esforço de amassar areia no moçambique, pois ali só força em descidas. Passei o campeche e então o morro das pedras apareceu difuso ao longe. E era longe, porque não chegava nunca e fui começando a derreter.

Um sol de meio dia apareceu pra me cozinhar na camiseta preta. Tinha 250 ml de água que fui preservando, nunca termine com a sua água totalmente enquanto isso não impedir sua sobrevivência. A areia era um terror, ainda bem que troquei pra um par de go run 4. Ali pelos 5 km apareceu um posto de hidratação, joguei dois copos na cabeça e bebi mais dois. Tive que lavar os óculos de tanto suor e fui usando o boné para secar a testa avantajada, que produzia muito líquido abaixo da borda do chapéu. A staff também me falou que eu era o sexto atleta a passar ali. Que incrível correr na frente numa volta à ilha ! Imaginava que lá pela joaquina já começaríamos a ser ultrapassados, mas isso só foi acontecer na descida do sertão ! Mas peraí ! Sexto de onde ? Quem se meteu na nossa frente ? Como pode ? Logo tudo se esclareceu, passei uma atleta da sprint que não era dupla. Ela deve ter largado pouco antes de eu descer do posto salva vidas no campeche.

Subi as escadas pro do morro das pedras e comecei a correr no asfalto, que alívio ! O ritmo não parecia tão horrível pra 45 km de corrida e faltariam só mais dois trechos ! Dois ! Como estava passando rápido ! Mas aí veio a desgraça. Uns 500, 700 m de areia da praia da armação. Eu realmente odeio aquela areia. Não há situação boa ali. Sempre é uma coisa horrível. Foi pra moer, e ao transitar para o Gian o vi sair com esforço incompatível com a velocidade. Três km daquilo no penúltimo trecho era de matar.
O João, sogro do Gian e apoio nota dez !
Estávamos já bem além da metade e encontramos a esposa e a sogra do Gian. Trouxeram uma bike no carro e o xará saiu pra acompanhar o Gico. Ali fiz uma faxina em mim mesmo. Troquei a camiseta e as meias, devolvi o tênis gordo e fiquei relativamente confortável. Só faltava o sertão e a chegada. Demoramos bastante a sair, comi batatas e pizza, paçoca e muito líquido, que havia jorrado pelos poros no trecho anterior. Fomos pros açores e lá alonguei um pouco, deitei na calçada, comi mais e me preparei. O xará logo chegou de bike e se aprontou pra correr comigo. Ali vimos que a quarta dupla estava uns 10 min à frente. Pensei que daria pra tentar buscar no sertão. Mas a realidade se sobrepôs às minhas pernas.

Quando o Gico apareceu estava aparentemente bem, mas guardava uma panturrilha em prantos. Correr em equipe, e principalmente em dupla, requer uma sintonia perfeita. Cada atleta certamente se esforça mais sabendo que tem uma equipe esperando, e isso pode nos fazer exagerar. Apesar de termos nos organizado por whatsapp e reunido uma única vez, não precisamos falar nada durante as transições. A expressão dizia tudo, e um "vai com calma" antes de largar e um saudação quando terminava era tudo o que dizíamos.

Mas ali conversamos. Pulei quando o vi chegando, berrei que só faltava um, falamos que cada um só tinha mais um longo de 15 km pra fazer. Saí confiante pra mais um encontro com o sertão !

Trecho sensacional e duro. Alívio correr em areias duras e então em estrada de terra plana ! Não sentia mais a coxa esquerda, só uma leve puxada na virilha direita nas subidas, que fiz todas andando forte. Mesmo sem sol o calor era forte e suava em bicas, o Rafa me dava gatorade e acompanhava a alguns metros, ajudando muito psicologicamente.

Quando finalmente chegamos no topo tinha um posto dágua e isotônico, que sorvi rapidamente e me mandei morro abaixo. Pra que, logo comecei a sentir a coxa direita travar e os dedinhos se amassarem contra a frente dos tênis. O imbecil esqueceu de cortar as unhas....

Desci com dificuldade e então me arrastei no trecho final. 6 km praticamente planos onde eu tive que andar várias vezes. Tomei um gel, o primeiro da prova toda. E usei cada pequena ondulação do terreno pra caminhar. Senti uma dor estranha embaixo dos dedos do pé direito. Fiquei pensando que era a meia de compressão, pois fiquei o dia todo com elas e aquela que pus na armação era nova e muito apertada.

Cheguei muito acabado na tapera. Podre de cansado. 1h49 para o trecho, recorde de lerdeza extrema histórica. Tirei os tênis e a meia, andei na grama. Me alonguei e então peguei dois gatorades no portamalas e sentei no banco da frente. Passei novamente gel de arnica nas coxas e massageei até cansar os braços.

Descanso após o sertão, misturado com desespero kkkk
Passamos o trecho da base área e esperamos o Gico na saída pro aeroporto. Ele chegou mancando e deitou. Eu estava me alongando no muro e corri lá. A expressão era de muita dor, e fiquei preocupado. Estávamos perto mas ainda longe, eram uns 7 ou 8 km até a troca. Pernas pra cima, água, água de coco e então ele seguiu. Gritei pra trotar, pra não olhar relógio, apenas ir. Qualquer ritmo serviria, era só terminar. Nessa hora é sempre sutil a linha entre bravura e demência, e ter um doido incentivando pode ser perigoso.

O xará pegou a bike novamente e foi junto. Seguimos para o estacionamento, calcei meias secas e o tênis. Comi bastante, estava com fome de apertar o estômago. Fomos pra ciclovia esperar. Conversamos com muita gente e não consegui mais ver a colocação, já tinha muita equipe embolada.

Que alegria quando vi o Gico vir correndo na ciclovia ! Depois de saber o estado da panturrilha dele após a prova, acho que nesse monte de provas que já fiz, inúmeras delas em equipe, nunca vi ninguém superar uma encrenca tão grande. Incrivelmente sensacional parceiro ! Obrigado, e agora se cuide :-) !

Faltava apenas mais um trecho e completaríamos a prova ! Míseros 6.2 km e eu estava me sentindo muito bem. Saí leve no começo mas logo encaixei o mesmo ritmo da madrugada. Voltei a correr a 4:30 mesmo nos morrinhos da prainha com 60 km nas pernas depois de chegar destruído do sertão, achando que teria que andar o final. Como é que pode tamanha mudança em tão pouco tempo ?!

Voando na chegada. Contraste com 2h antes, quando achei que chegaria andando :-)
Só sei que segui correndo sem parar um segundo. Não senti dor nenhuma em lugar algum. Quando entrei na ciclovia da beira mar norte comecei a rir. Dei gargalhadas mesmo, espantado que estava. O Rafa na bike acompanhando perguntava o que tinha acontecido :-). E eu me perguntava "como é que pode isso" ? De onde a gente consegue completar essas coisas extraordinárias ? O Gico correu com uma panturrilha destruída. Chegou num estado preocupante na saída da base e conseguiu terminar o trecho correndo bem. Eu quase morri lá no moçambique e depois de novo no sertão e aí vem essa chegada. Nunca será possível treinar pra isso. Acho que essa experiência só vem com o tempo e as provas. Apesar de não haver treino que chegue perto, a sensação é que todos os treinos nos levam a isto: todos eles somados, as incontáveis horas que passamos engrossando a casca para nos permitir empurrar o limite cada vez um pouquinho mais pra longe.

Chegando ! Foto da Laís que estava lá com a turma toda esperando !!!

E então chegamos. Uma chegada de alegria, realização, alívio. Prova das mais difíceis que já fiz, e das mais sensacionais também. E como sempre, divertida.

Agradeço muito pelo convite para correr essa prova. Valeu Gico ! Completamos, competimos, nos divertimos, nos desafiamos. O que mais querer !?

Obrigado a todos os amigos pela torcida e participação, à minha família por estar em mais uma chegada e parabéns aos campeões. Até a próxima, que será em 28 de maio.

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Dados técnicos

Trechos no garmin


Tempo oficial de 12h58min08seg, sexta posição nas duplas. Quinta 5 min a frente e quarta 10 min na nossa frente. Terceira dupla foi o Juan e Anderson com fantásticas 11h45. A primeira bateu recorde da prova com 9:49 e a segunda com 10:29 ! Eu hein, turma mais maníaca :-D !

Consumi muito liquido e comida. Gatorade, coca cola, água, água de coco, redbull. Pizza, batata assada, banana, paçoca. Tudo na medida certa. Tomei um gel no sertão. Dois BCAA em algum momento do dia.

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