Depois da chegada... A frase é verdadeira ! |
Participar dessa corrida foi algo surreal. Sempre tive vontade de correr uma coisa de três dígitos, e depois de muito ver provas desse tamanho e maiores lá fora, eis que aparece uma aqui do lado de casa. Praticamente um ímã me atraindo num ano que já começou com El Cruce e que também não teria ironman. Me inscrevi em dezembro, comecei a treinar específico em março e pulei rumo ao desconhecido. Ao infinito e além como diz o buzz lightyear.
Depois de 9 desafrios, a distância máxima que já tinha corrido era de 53 km. Em treinos, 34 para as maratonas, irons e Cruce. Esses treinos foram divertidos, voltei a correr em trilhas depois de um tempo só no asfalto e vou dizer, que saudade. Isso não pode ficar de lado, vou dar um jeito de manter corridas offroad mesmo em treinos pro ironman. Fiz três treinos especiais, um de 31 na volta sul, outro de 40 com o sertão duplo e várias trilhas e aí um de 46 em Urubici onde parece que a coisa engrenou de vez. Aquele último deu confiança.
Pois bem, vamos à prova !
Segui para Porto Belo na sexta-feira às 19:00, chegamos lá o Alexandre Tremel, Daniel Carvalho e eu às 21:00. Arrumei as coisas, andamos pela arena de largada ainda vazia e fomos tentar descansar. O tempo não passava e depois de fazer tudo várias vezes fui comer um misto quente com coca-cola às 23:10 e então logo estávamos na muvuca da largada. Encontrar aquela turma maluca nessas horas não tem preço. Inacreditável a energia concentrada ali debaixo daquela noite clara e de temperatura agradável.
Largamos de headlamp na testa pontualmente à zero hora do sábado 17 de maio. Um desafio monstro estava começando, e não era só corrida. Correr à noite toda era uma incógnita, e sobre o percurso eu só conhecia as praias do K42. O resto era totalmente não mapeado, não rolou nenhum treino de reconhecimento.
Todo mundo dormindo e nós lá na largada ;-) |
Essa sinalização foi perfeita, colocaram fitas zebradas e pedaços de fitas reflexivas nas arvores, aquilo acendia ao ser iluminado pela lanterna. Praticamente não havia staff dentro das trilhas e ainda assim era muito fácil se orientar. Só que dava um desespero olhar pra cima e ver um caminho de luzes brancas ascenderem até o infinito. Rampas longas, curvas, descidas, trilhas espetaculares e aí um pedaço plano de terra batida. Alcancei a Débora no começo das subidas e seguimos junto com mais alguns atletas, veio um descida e todos me passaram, estava difícil enxergar ou o terrenos era muito complicado, ou as pernas muito lerdas. O fato é que a descida estava mais difícil que a subida. Mais um plano e então subiu de novo, segui praticamente sozinho boa parte dessa trilha, uma viagem.
A descida foi forte e no final fui ultrapassado por uns 3 atletas e pela Vera, agora líder do feminino. Ela descia numa velocidade assustadora e desapareceu da minha vista até o km 84. Logo veio outro morro que deu trabalho e onde fiz besteira. Estava meio estragado durante o dia, achei que era ansiedade pré-prova. Aí fiquei com frio por largar só de camiseta e no topo do morro coloquei o corta-vento, desci tranquilo, passei o plano e comecei a subir dentro da mata sem vento. E fui subindo até ficar encharcado numa noite fria. Resultado: não tirei mais o corta vento e fiquei gelado e molhado até amanhecer, nada bom. A garganta pifou total sábado a noite...
Primeira parada, km 37 |
Depois desse morro passamos na largada do km 65 onde fiz uma parada programada, 4 min sentado comendo e recarregando o camelback. Ali estava com 4h40 de prova mais ou menos e já 37 km nas pernas (deveriam ser 35). Pouco antes disso veio a Clara em segundo feminino, encontrei o Piu e o Valmor e logo todos desapareceram na noite enquanto em me reorganizava. Saí dali e corri o outro morro praticamente sozinho.
Até então eu estava com a altimetria toda na cabeça, sabia onde deveria ter subida, até qual altitude e distância. Mas fiquei afetado pelo sono ou confundi tudo, pois achei que só haveria plano até o posto de largada dos 50 km, onde faria outra parada programada. Mas tinha um morro malvado, percorrido solitário com iron mainden no fone de ouvido e a lua de companheira. E o frio, a garganta já doía. Não era pra estar sentindo frio. Nessa subida uma dor na lombar perto do glúteo começou a ficar mais forte, e eu comecei a subir com o dedão pressionando o músculo ali. O pé direito começou a doer na bola e no dedão e a panturrilha esquerda ficou estranha. Fiquei preocupado e com o terreno cheio de grama molhada e pedras na descida fui na paciência para não me destruir de vez ou cair.
Em termos de sono o bicho pegou às 5-5:30. Fiquei realmente lerdo e aproveitei um pequeno córrego para lavar a cara e dar uma acordada. Comi gel e mariola extra, tomei um resto de gatorade e engoli dois bcaa e 100 mg de cafeína. Ajudou um pouco.
Finalmente plano e cheguei no posto de largada dos 50 km com 54 às 6:55 da manhã. Ali peguei a sacola que deixamos com a organização, troquei o material noturno pelo diurno (gorro por boné, lanterna por óculos de sol, etc), passei protetor solar, coloquei uma camiseta seca e inspecionei o pé direito. Essa parada foi programada numas conversas com o coach. Achamos melhor parar preventivo e recuperar do que arriscar quebrar. E ali eu precisava parar. Estava bem cansado, torto, sendo ultrapassado por muita gente e achando tudo muito difícil. Arrumei tudo, tomei bastante sopa e comi bisnaguinhas, batata ruffles e reabasteci. Ainda tinha tempo para os 15 min planejados e deitei no chão com os pés na cadeira. Achei um saco com gelo e pedi outro à staff para colocar nas coxas debaixo da bermuda.
Saí novo e o Manoel Lago, diretor de prova, me falou que eram mais 6,5 km planos e então viria A TRILHA. O jeito que ele falou A TRILHA me deixou definitivamente intrigado. Pouco antes tinha encontrado o Nando que fazia os 84 km, ele tinha feito um treino lá e contou maravilhas do percurso por vir. E eu achava que o pior já tinha ficado pra trás...
O Marcelo Eninger veio dos 84 voando, pedi pra me esperar pra seguirmos juntos (estava numa parada fisiológica num poste) mas logo desisti, ele estava muito rápido. Depois a Débora reapareceu, não a via desde o km 25 e ela veio forte e eu fui junto. Comecei a correr melhor e com as pernas mais soltas mas o dedão não parava de doer. Pedi um advil à Débora, o meu estava no kit enfiado na mochila. Tomei a baguinha verde e esperei o dedo ficar quieto, mas ele foi incomodando até o final (hoje está dormente e formigando, acho que esmaguei algum nervo...).
Atravessamos a BR-101 próximo ao pedágio de Porto Belo por uma passarela e seguimos reto rumo ao morro que bloqueava o horizonte. Pulamos um posto dágua e começamos uma subida bizarra. Eu não conseguia subir com os pés pra frente, tinha que botar na posição de 'dez pras duas' para não ter que ficar na ponta dos dedos e forçar a panturrilha. Que rampa ! E aí entramos numa trilha de dente de serra, passando por prainhas desertas de areia fofa e mais trilhas. Por aí o Giliard passou numa subida e logo depois o Chico Santos foi à caça descendo feito doido. Naquela hora até que eu estava descendo direito com mais de 60 km nas pernas.
Pegamos duas trilhas bem erodidas e muito técnicas por 15 km, um sobe e desce danado e então saímos na praia de Mariscal. No posto de hidratação antes da última subida vi a Taty chegando e acabei desgarrando da Débora quando vi que comecei a passar gente de pulseira laranja (100 km). Incrivelmente eu comecei a correr melhor depois dos 50 e dali em diante só fui ultrapassado por atletas das distâncias menores, que largavam depois da nossa passagem. Depois de correr mariscal inteira parei no posto da largada da meia-maratona onde fiz outra parada técnica, comi bastante melancia e banana e enchi o camelback. Encontrei a Clara meio quebrada e segui pra Canto Grande, parando para fazer um selfie para por no facebook quando puxei o celular para avisar em casa a hora prevista para resgate ;-). E aí lá no começo de canto grande a Débora chegou, agora em segundo lugar. Seguimos pela praia infinita num pace muito bom e comecei a abrir um pouco até que vi a líder do feminino. A praia acabou numa pirambeira de asfalto que levava a quatro ilhas e então a Débora veio já como líder. Muito legal ver a disputa dessa forma. Indestrutível essa mulher. Teve câimbras no começo da prova, veio recuperando lá do trás e no km 87 assumiu a ponta novamente para não perder mais !
No posto da meia eu perguntei pro Manoel que distância a prova teria, pois teve 54 na 'metade'... teria 108 ? Ele explicou que houve uma mudança na véspera e acabou aumentando um pouco a primeira metade mas que a segunda tinha 50 mesmo. Segundo ele, 5 % de erro está ótimo para uma trilha dessas. Eu concordo. Percurso espetacular. E ainda bem que errou para mais. Se fosse menos acho que eu ficaria dando voltas na chegada para fechar 100 km hehehe.
Seguimos junto de um camarada de Brasília que estava correndo os 65 km praticamente no mesmo ritmo, andando nas subidas, descendo correndo 'forte' e num pace decente nos planos. Passei mais alguns atletas dos 100 km (depois vi que foram 18 desde o km 60). Passei pela largada dos 12 km e parei novamente, mas por motivos gastronômicos: já passava da hora do almoço e lá tinha pão de queijo ! Comi 6 pãezinhos com dois copos de coca-cola e segui feliz. Aí veio a parede. Uma trilha nanica e vertical onde levei 21 min pra fazer um km. Isso mostra um pouco do estado das coisas. E depois um resto de asfalto que não acabava... mas estava correndo fácil nas descidas.
Desde o km 60 eu comemorava cada parcial redonda... 60, 70, 80, 90 e finalmente 100 km ! Ver isso virar no GPS é estranho. Parece piloto automático, eu estava em velocidade de cruzeiro no plano sem pensar, só indo, indo... achei incrível estar correndo depois de 100 km, sem dor alguma exceto o dedão. Nada de câimbras, bolhas, estômago revirado, pernas travadas. Fiquei eufórico e comecei a correr mais rápido e uma staff falou que só faltava 1,5 km, aí segui sem mais parar pra fechar essa monstruosidade. Que, aprendi, é possível de ser feita por um amador determinado. E parece que mais também é possível ;-). Não cheguei destruído, aniquilado, morrendo nem me arrastando. Estava podre de cansado e moído, mas vivo, consciente e inteiro.
Confirmei algo em que acredito, de que é possível treinar para essas provas longas sem necessariamente fazer um volume absurdo de corrida, desde que mantendeo o treino de triathlon num nível mínimo. A bike ajuda muito a manter o cardiovascular e a força, já a natação compensa a pancadaria toda. E ainda dá pra fazer umas provinhas no caminho, como o longo da Fetrisc.
Passar essa chegada foi muito legal. O Aracajú estava lá com a Cínthia e a pequena, logo vi meu pai e depois do pórtico a Daiane junto com os fotógrafos tirando foto com o celular ! Desmontei no chão depois de abraçar a ela e ao Arthur, que ficou perdido e veio correndo depois de mim, acabei voltando e entrando com ele de novo ;-). Que coisa sensacional ! 14h27min de corrida, metade à noite, 103,55 km e 3000 m de subida acumulada deixadas para trás.
Sem legenda |
Vontade, só isso é capaz de nos fazer correr essas coisas. As pernas desistem de reclamar, o corpo se cansa de lutar e parece que tudo entra em fluxo. O tempo passa sem vermos, a noite voou, o sol nasceu espetacular e um dia azul mostrou toda a beleza embasbacante desse pedaço de litoral incrível que é a península de Porto Belo. Me sinto um privilegiado por tudo, por ter participado disso, ter treinado, pelos amigos na batalha, por ter chegado e ter a família e amigos por lá. Um ambiente de amizade que só as trilhas proporcionam... O Giliard correndo na subida ainda parou para dar um aperto de mão. A líder dos 100 km ao ser ultrapassada desejou boa prova e boa sorte à Débora...
Depois da chegada a muvuca divertida de sempre, todo mundo lá cheio de história pra contar. Fui pro gelo, aí almocei um prato de peixe pra duas pessoas, tomei banho numa torneira a 40 cm do chão e arrumei as tralhas para voltar pra casa.
E então fui me atualizando do andamento de tudo. Encontrei a Taty que chegou em terceira geral. Fiquei sabendo da torção do joelho do Tremel antes do km 50, uma pena, mas um risco a que estamos sujeitos nessas provas. Vai melhorar e voltar na próxima tenho certeza. E bem depois vi o que o Daniel conseguiu fazer... concluir aquilo de muleta improvisada, 30 km com o tornozelo torcido... Depois dizem que somos loucos. Loucos são os vêem a vida passar sem passar por ela ;-).
Até a próxima ;-)
Sobrou um pouco de energia :-). |
A Daiane sempre na linha de chegada com esse pequeno ! Dessa vez levamos o meu pai junto, ficou empolgado :-) |
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Dados técnicos
O campeão foi o Iazaldir, com absurdas 10h11min. O Sérgio Trecaman foi o segundo colocado (no Cruce também) e então Cristiano Marcelino, Plínio Souza e Tiago Sassi. No feminino, Débora, Clara, Taty, Vera e Iva. Nos 50 Km o Giliard Venceu e o Chico Santos ficou em segundo. Marcelo 5º nos 84 km.
Fiquei em 4º na categoria e 13º geral. Em 3º ficou o Giba, 11 minutos à frente, em segundo o Piu e quem ganhou a 40-49 anos foi o Fernando Vieira do RJ com 13h10min.
Consumi 9 dos 14 gels que levei, 10 mariolas, 2 garrafinhas de carbup concentrado, 9 comprimidos de 800mg de BCAA, 3 cápsulas de sal e 100 mg de cafeína. Fora isso, um gatorade inteiro em quase todo posto, muita água, coca-cola, ruffes, mais mariola, banana, melancia, pão de queijo e sopa.
Corri com o Salomon Sense Mantra e de meias de compressão, bermuda de triathlon e camiseta. Na mochila, bolsa dágua de 2L, kit de primeiros socorros, pilhas, lanterna, corta-vento, gorro leve.
As trilhas da primeira metade eram bem amplas e com descidas cheias de pedras. As praias eram todas firmes exceto alguns poucos trechos de areia grossa e bem fofa, não mais de 3 km no total. As trilhas da segunda metade eram muito técnicas, erodidas e cheias de pedras e raízes. O percurso foi exigente, mas a organização poderia ter eliminado boa parte dos atletas se colocasse a trilha até a praia da tainha em canto grande (aquela do K42).