Post reeditado. Janeiro de 2007
------
|
Olhando pra baixo durante a escalada do Cotopaxi |
Para quem sonha com alta montanha e mora em Florianópolis, a gula sempre fala mais alto. Pensar em escalar no Equador era o mesmo que escolher em quais brinquedos andar primeiro num parque de diversões. Eu e o Anastácio começamos a planejar a viagem e me vi diante de múltiplas escolhas. Optamos por duas montanhas de trekking para aclimatar, uma montanha em rocha para começar a abrir o apetite e as duas montanhas mais conhecidas do Equador, Cotopaxi e Chimborazo, respectivamente o mais alto vulcão ativo do mundo e maior montanha do equatoriana. Todas as outras ficariam na vontade: Cayambe, Antisana, Altar...
O Equador tem 10 montanhas geladas acima de 5000 metros, um seis mil e inúmeras opções por todos os lados. Nós tínhamos mais ou menos 13 dias disponíveis. Aclimatação lenta e bem feita seria chave para mim, mas para o Anastácio, que não consegue nem ter dor de cabeça leve, seria um teste da sua paciência rarefeita como o ar de Quito.
Saímos de Florianópolis dia 3 de janeiro, depois de um período pré-viagem incrivelmente indeciso onde fui confirmar tudo de forma absoluta somente na semana anterior. Voaríamos pela Varig até Bogotá e de lá para Quito com a Avianca. A volta seria pelo mesmo caminho, com tempo para conhecer a capital colombiana. A escolha do dia para voltar de Quito nos causaria um bocado de perda de tempo depois.
Chegamos em Quito às onze da noite e fomos direto para o hotel. A escalada começou fisiologicamente falando no primeiro lance de escadas que vi pela frente, quando já consegui ficar ofegante. Sensação estranhamente boa perceber um pouco da rarefação do ar aos 2800 metros de altitude de Quito, onde a pressão atmosférica é somente 71% daquela ao nível do mar.
Ficamos num bairro chamado Mariscal, também conhecido como gringolândia. Bem localizado, tinha opções para todos os gostos num raio de alguns minutos de caminhada, com agências, hospedagem e muitos restaurantes. Nos estabelecemos numa boa vizinhança, já que nas escaladas no Equador passa-se bastante tempo na cidade entre uma montanha e outra.
O centro histórico de Quito é muito interessante, construções antigas, igrejas de 1600 e arquitetura hispânica contrastando com os arredores mais modernos e linhas de trolebus dentro das ruas apertadas. Gastamos o primeiro dia perambulando por lá e visitando os museus e monumentos de interesse. Tentamos subir El Panecillo a pé pra treinar, mas um policial nos desaconselhou e pegamos um táxi de motorista ranzinza pra ir até lá. A 3100 metros a vista da cidade é panorâmica mas as nuvens bloqueavam todas as montanhas que deveriam estar no horizonte.
Em alguns guias a cidade é classificada como violenta e insegura, mas fora o conselho do Panecillo, não tivemos problema algum em andar Quito inteira de ônibus e a pé, de dia ou de noite. O transporte é eficiente e barato no equador, mas a poluição no centro congestionado da capital é grande e difícil de suportar em alguns lugares. Viajar por terra também pareceu tranquilo e barato, embora os horários sejam mais relaxados, os ônibus andem no acostamento da contramão a 100 Km/h e peguem gente em qualquer lugar.
O segundo dia de viagem foi reservado para conhecer o vulcão Pasachoa, num parque de floresta nebular fantástico. A própria cratera do vulcão é coberta de vegetação exuberante. Tomamos um ônibus em Quito no terminal El Trebol, o lugar mais poluído que já ví, diesel por todo lado e guardas de trânsito com máscaras. No vilarejo de Amaguaña negociamos uma caminhonete de U$ 7 para nos levar até a entrada da reserva, que surpreendentemente estava muito baixa a somente 3000 metros. Chegar nos 4100 não seria muito suave, mas a trilha era linda, parecida em alguns trechos com o tabuleiro com suas tufas de bambú. Logo a altitude começou a arrefecer o ritmo da caminhada e era difícil conciliar as sensações de estar numa floresta densa como as nossas e ao mesmo tempo sufocando sem ar. Após 3800 metros a floresta deu lugar a campos abertos e andamos por cristas e mais cristas, sempre com a cratera à direita.
O desnível de 1100 metros ficou pra trás depois de 3h40min de caminhada e escalaminhada próximo ao cume. A rocha no topo parecia podre e a ponto de se desfazer, mas estranhamente era firme parecendo pedaços de brita cimentados numa parede tosca. O visual estava novamente bloqueado por nuvens e somente podíamos ver Quito abaixo ao longe. Bom treino e um belo cume de 4100 metros.
Uma boa aclimatação é uma dente-de-serra ascendente de ganho de altitude. Seguindo esta idéia no quarto dia de viagem fomos bufar um pouco mais alto, no vulcão Rucu Pichincha, que domina Quito. Se ele espirrar para o lado leste, adeus cidade. Felizmente dizem os geólogos e a história recente que as explosões acontecem para o lado oeste do bicho. O vulcão explodiu feio em 1999 e cobriu a cidade de cinza por vários dias. Em 1980 transformou 4 dias em noite.
Existe agora um teleférico que leva até 4100 metros, ao contrário do guia que compramos (edição 2000) que falava que o Rucu não devia ser tentado nem em grandes grupos sob risco de assalto e sequestro (?). Lá na base não vimos muita coisa assustadora mas ainda existe civilização até uns 3200 metros.
No topo do teleférico tem lojas, quiosques de oxigênio, parques e uma linha de transmissão gigantesca. Começa-se a caminhar rumo ao cume num aclive suave e depois de umas subidas e baixadas chegamos na base do Pichincha. Sobe-se pela direita, contornando uma parede vertical e andando por umas arestas, acarreros e rampas de areia vulcânica. Mais para cima a rocha fica boa e a escalaminhada começa. Perto do cume o tempo fechou, a neblina gelava tudo e molhava a rocha. O Anastácio passou frio sem anorak. Chegamos no cume sem visão de nada mas durante o descanso e lanche abriu um pouco dentro da cratera mas não tivemos boas vistas. Chegar nos 4750 metros deste cume me custou um bocado de esforço, talvez pelo dia anterior, talvez pela falta de aclimatação adequada. Descemos esquiando na areia e depois pernando muito até o teleférico. Jantamos massa preparada ao vivo, numa reposição de carboidratos muito bem vinda.
Domingo era o quinto dia e o Iliniza nos esperava. Agora estava ficando bom, iríamos acampar na montanha. Infelizmente não achamos combustível para o fogareiro e fomos mesmo ficar no Refúgio a 4700 metros. 'Os Ilinizas' como eram conhecidos compõem um parque ao sul de Quito que tem duas montanhas, o Sul mais técnico e com glaciar e o Norte com rocha e mais simples. A cidade alvo era Machachi, para onde fomos em 1h40min de viagem num ônibus que saiu vazio e terminou lotado, dada a quantidade de pessoas que foi sendo recolhida no caminho. De lá pegamos outro ônibus para El Chalpi, um povoado aos pés dos Ilinizas e aí então pulamos numa caminhonete de U$ 10 para nos levar até La Virgem, um local para acampamento a 3900 metros de onde começaríamos a caminhada ao refúgio Nuevos Horizontes.
Comecei a caminhada de leve, dosando para não sentir como o dia anterior. Fui num ritmo leve bebendo muita água, comendo bala e fotografando. É uma subida árdua e ininterrupta, forte e constante, tem que ir devagar. Chegamos no refúgio a 4700 metros em 2h30min, em meio a neblina total. O lugar era pequeno, sujo e estava cheio. A noite seria longa, já que fiquei num 'beliche' perto do teto logo acima da cozinha. Encontramos um monte de alemães e americanos com seus guias e uma dupla de tchecos sem guia como nós. Um alemão velhinho que ultrapassamos na subida chegou bem depois completamente exausto e mancando. Jantamos e fui dormir. Passei um tempão ouvindo música, tentando pegar no sono até que criei coragem para ir ao banheiro - a noite deve estar limpa, pensei com meus zíperes (não tinha nenhum botão por lá) e surpresa, neblina de cortar com faca !
Acordei com dor de cabeça igual a quase todo mundo, menos o Anastácio. No dia anterior eu estava ótimo, devia ser a falta de ventilação do refúgio que não tinha janela e ficava com fogão ligado o tempo todo e umas 20 pessoas respirando dentro.
O Nick, que na verdade era australiano e morava em Praga resolveu que estava mal e não subiria, o que fez com que o Tcheco verdadeiro, o Martin, nos acompanhasse na escalada ao Iliniza Norte. Saímos cedo pra cima dentro da neblina, afinal era só seguir a trilha, como disse o Anastácio. Subí com o GPS ligado o tempo todo, seguimos direto por uma crista exposta e fizemos uma travessia interessante no 'paso de la muerte' com um pouco de neve. Aí contornamos uma torre por baixo e pela direita e seguimos por cima de pedras soltas e blocos, cristas e paredinhas até o cume minúsculo e fantástico.
Aos 5150 metros de altitude a aclimatação parecia boa. Visibilidade... Zero, pra variar. 'Será que é sempre assim ?!'... Descemos, descansamos no refúgio e começamos a descer de vez. Quase em La Virgem um dos guias vinha subindo desesperado procurando o alemão velhinho... O dito não foi ao cume e ficou no refúgio. Vimos quando ele começou a descer sozinho na neblina as 7 da manhã com seu mochilão, mas ele não chegou no acampamento. Os dois amigos estavam esperando e o guia estava apavorado, sem saber o que fazer. Tentamos ajudar com informações mas os vales que descem dos Ilinizas são enormes e se não saísse de lá sozinho, ia ser muito difícil achá-lo. No final das contas descobrimos que ele desceu um vale errado e ficou perdido, sendo achado no outro dia muito cansado. Ainda encontramos o infeliz no refúgio do Chimborazo (foi para acompanhar os dois amigos), só no Cotopaxi soubemos que ele estava vivo, até então a notícia era de que um alemão havia se perdido. Susto para uma montanha que deveria ser simples, depois soubemos também de uma escaladora muito forte da república tcheca que desapareceu para sempre em 2001 no Norte. Histórias estranhas para uma montanha 'simples' - simples uma ova, ambiente de alta-montanha é coisa séria não importa onde e exige atenção, cuidado, respeito e um fator medo adequado.
Na descida de caminhonete para Chalpi o Martin resolveu escalar conosco, o Nick não escalaria mais e acompanharia até os refúgios. Também rachamos os U$ 350 que pagaríamos para a Condor Treks para nos levar ao Cotopaxi e Chimborazo. Nossa escalada se transformava numa expedição internacional.
Na segunda-feira 9 de janeiro fomos conhecer a linha do equador. O paralelo zero fica ao norte de Quito, na cidade de Mitad del Mundo. Chega-se lá com um ônibus da empresa Trans-hemisféricos. Nomes sugestivos.
O lugar é um parque com uns monumentos bacanas e a famosa linha impressa no chão. Este foi nosso dia de descanso para o Cotopaxi, compra de comida, arrumação de equipamentos e preparação psicológica e logística para as escaladas por vir, os principais objetivos da viagem.
10 de janeiro. Saímos às 8 horas do Backpackers Inn, nosso hotel em quito. Rumo ao sul avistamos novamente o Iliniza da caminhonete do Bolívar, nosso motorista no Coto e Chimbo (somente para os íntimos). O tempo estava ruim e garoava, mas o Bolívar nos tranquilizava: lá em cima é diferente... Entramos no Parque Nacional Cotopaxi e pagamos taxa de conservação de U$ 10. Depois continuamos a 4000 metros numa estrada longa até bem embaixo da montanha, que estava se abrindo. À esquerda estava o Rumiñahui, um vulção esfacelado com cara de mau. Começamos a subir forte para o parqueadero, o local onde os carros param para a subida até o refúgio do Coto, em duas horas e meia de viagem. Muita gente vai em excursão de um dia até o refúgio passar mal e curtir o visual.
Lá um vento forte e gelado nos aguardava mas o céu estava aberto e já podíamos ver o desafio. Subimos os 300 metros de desnível em 50 minutos até o refúgio a 4800 metros de altitude. Se não estávamos aos pés da montanha, já estávamos lá pela barriga, bem de frente para a headwall. 'É grande mesmo... quanto gelo esse negócio tem', foi a primeira coisa que eu pensei.
O refúgio era grande, bem construído e limpo. Tem dois andares, quartos em cima e refeitório e cozinhas em baixo com capacidade oficial de 80 pessoas (!). Nos ajeitamos, almoçamos e fomos treinar no gelo. Dado o horário, nada era muito sólido e as paredes pareciam estar numa área cheia de greta bem acima, de modo que ficamos a uns 5000 metros fazendo ancoragens, praticando auto-detenção em rampas e outras brincadeiras sérias. Nada de brincar de top-roupe com piolet técnico.
Retornamos ao refúgio as 17 horas cansados e famintos e o encontramos bem cheio. Como o tempo estava excelente, o papo geral era que aquela noite seria adequada para ir ao cume. Tínhamos combinado 3 dias com a agência mas eles telefonariam pela manhã para saber se escalamos ou não, de forma que era possível antecipar um dia. A questão era que tínhamos gastado bastante energia treinando naquela tarde e fomos dormir as 19:30.
Com umas 30 pessoas num salão cheio de beliches silêncio não é uma coisa muito fácil de encontrar. Tentei dormir, ouvi música, troquei de roupa (calorão danado no saco de dormir dentro do refúgio) e nada. A natureza me convidou a ir ao banheiro. Me encapotei todo, desci as escadas, quase caí de cara no chão e cheguei na porta do refúgio. Quando abrí, um espetáculo. O glaciar em frente estava claro. O céu entupido de estrelas (nunca ví daquilo, a via láctea era sólida) e uma meia lua nascendo me deixaram com vontade de começar a me equipar e acordar todo mundo. Terminei o serviço e voltei ao refúgio. Depois de me ajeitar de novo vi que eram 22 horas e fiquei preocupado em não dormir nada. Imediatamente acordei com uma barulheira danada de mosquetão tilintando, botas pesadas no chão e um falatório multi-idiomas. Era meia noite, apaguei por duas horas e todo mundo já estava se mexendo. Concordamos em esperar um pouco a bagunça diminuir e descemos logo em seguida, após equipar completamente (a mochila estava pronta, até com gatorade quente dentro). No desayuno bebi todo o chá que consegui, comí pão e uma banana que achei na mesa e então saímos à 1h30min sob bilhões de estrelas e um frio de 5 graus negativos.
Seguimos na trilha da tarde anterior e chegamos na neve. Um pouco mais e encontramos os grupos guiados pondo os grampões, quando escutei o guia falando que lá era o ponto de desistir, que se entrassem no glaciar e quisessem desistir o guia teria que voltar com o outro companheiro de corda. Estranho uma orientação dessas depois de meia hora de caminhada...
Subimos um pouco mais e paramos para colocar os grampões. Começamos a enorme rampa que dava acesso a parte superior do glaciar, e a rampa era mesmo enorme e empinada, muito forte. Não podíamos parar e seguimos direto por duas horas. Quando a inclinação diminuiu um pouco paramos numa ancoragem com as piquetas para beber. Os guias passaram, uns com três clientes numa corda de 25 metros. A serpente de luzes brancas na neve foi uma visão impressionante.
O encordamento em rampas foi polêmico. Uns suícos diziam que não fazia-se mais isso nos Alpes, que a chance de parar uma queda em rampa sem greta e sem precipício na base era pequena e não justificava o risco de uma queda embolada e descontrolada. O Martin dizia a mesma coisa. Ficamos um pouco mais confiantes com o treino da tarde e condição da neve e fomos soltos enquanto não havia gretas.
Subimos mais um pouco, passamos os grupos guiados de novo e chegamos num lugar estranho cheio de gretas. Encordamos e seguimos por um trecho curto e muito vertical, bem mais do que a rampa anterior, aqui tinha uns 60 graus no mínimo. Continuamos por cristas, rampas e umas pontes de neve e chegamos em mais grupos a frente. Estavam descansando bem debaixo de um serác enorme e ficamos um pouco afastados. As 4h30min o sono me pegou. Estava tranquilo até ali, mas depois de descansar fiquei fraco e com preguiça. Senti muito frio misturado com sono, a vontade de dormir era grande.
Tomei um susto quando olhei pra cima, era um domo gigante e a via seguia direto a perder de vista, numa borda de precipício. Entramos e seguimos devagar. Comecei a ficar lento. O Anastácio perguntava: "Cadê o cume ?". "Sei lá, não tenho o PC e nem sei a coordenada", tá pensando que é corrida de aventura ? Comecei a contar passos. Pensei estar nadando a 15x1, até que foi caindo e comecei a dar 5 passos, parava e tomar um tranco da corda, aí respirava fundo e começava de novo. O caminho seguia por mais rampas, atravessava na horizontal e subia de novo, como uma escada alongada. Pensei ouvir o meu ramal tocando. Tive uma vontade louca de tomar coca-cola. Aí o amanhecer ficou forte e o sol nos alcançou. Na verdade, nós é que o alcançamos, quando saímos da face e chegamos ao cume. Não vi nada, me joguei no chão, tirei a mochila, bebi muito gatorade, enchi a cara de filtro solar e peguei o óculos para voltar a enxergar. Aí sim !!! Que espetáculo. Tudo, absolutamente tudo aberto. Céu azul pra todo lado. Compensamos as outras montanhas com visual fechado.
Comemoramos muito. Pudemos ver boa parte das montanhas do Equador, Chimbo, Antisana, Cayambe, todas ao alcance das mãos... Horizonte de Cristal... O título do livro do Messner sobre o solo do Everest deve ser por dias como este, conforme prefácio: "Os dias que estes homens passam nas montanhas são os dias em que realmente vivem. Quando a mente se limpa das teias de aranha e o sangue corre com força pelas veias. Quando os cinco sentidos recobram a vitalidade e o homem, completo, se torna mais sensível; e então já pode ouvir as vozes da natureza, e ver as belezas que só estão ao alcance dos mais ousados."
Uma das minha melhores escaladas. Muito gratificante, espetacular, bonita, difícil e divertida. Depois de muito curtir descemos - passamos 50 minutos no cume e descemos depois de todos os outros grupos já estarem longe.
Tudo muito lento. Cuidado em cada passo. Na verdade cada passo era pensado, calculado e executado mecanica e indefinidamente, isso cansava muito além do físico. No topo da grande rampa desencordamos e tocamos pra baixo. Direto doía os dedos, em zigue zague parecia lento. O calor ficou forte, insuportável mesmo quando o sol bateu em cheio, foi o sol mais potente que já senti, amplificado dentro daquela brancura gigantesca. Chegamos no refúgio depois de 2h50min de descida.
Às 14hs, depois de esperar o Anastácio acordar, descemos. O Bolívar não estava lá e esperamos até ele aparecer. Chegamos em Quito as 17h30min. Banho, Internet, jantar e dormir, nesta ordem. Dias fantásticos e uma escalada sensacional, sensação de realização de sonhos... Realizando um e já pensando no próximo, assim deve ser.
No dia 12 descansamos geral. Minhas pernas estavam pesadas e o abdômen dolorido. Tentamos trocar o vôo para Bogotá e não conseguimos, adiar dois dias era mais caro do que jogar a passagem fora e comprar outra. Rodamos o centro velho novamente até cansar (pra quê ?!). Assisti TV pela primeira vez em uma semana. Compramos comida pro Chimbo e lá fomos arrumar os equipos de novo. Agora aprendi e fui mais leve, deixei piquetas técnicas e roupa em excesso mas levei parafusos de gelo, equipo técnico e capacete. No geral foi o mesmo peso, o que já é lucro pois conforme a viagem avança a paciência de arrumar tralhas diminui proporcionalmente.
Sábado 13 rumamos para o Chimborazo, 6310 metros, a maior montanha do equador. A partir do centro da terra o Chimborazo é considerado a maior montanha do mundo em função do achatamento a medida que se afasta do equador em direção aos pólos, o que na prática não significa muito. Até as medições no Himalaia no final do século 19 era considerado a maior montanha do planeta. Saímos as 9 horas e paramos para almoçar em Ambato. A estrada depois de lá é impressionante, longas retas, curvas em aclive e um visual de platô tibetano.
O carro pára no refúgio Carrel a 4800 metros. De lá subimos para o Whimper, a 5000 metros. Lápides por todo lado nos deixaram apreensivos e um pouco abatidos. Muita gente ficou lá. Chegamos no refúgio cedo, almoçamos às 16 horas e depois fui pra fora conversar com os guias que confabulavam. Há uma semana tínhamos informações recentes de que a rota estava boa e cheia de neve. Lá não parecia. Comentavam que a rota normal estava com muita queda de pedra em função da inexistência de neve e gelo. Só seria possível se estivesse muito, muito frio, pois a água que escorre do glaciar acima durante o dia colaria tudo no lugar durante a noite. A rota seria a Whimper com uma travessia para a normal a 5900 metros. A travessia tinha 200 metros horizontais na borda de um serac abaixo das paredes sul do Chimbo e teria que ser protegida com parafusos e encordada.
Edward Whimper foi um alpinista britânico que conquistou o até então impossível Matterhorn nos Alpes suíços. Durante a descida quatro escaladores escorregaram e morreram tragicamente, contribuindo para a fama assassina que a montanha tinha na época. A torrente de críticas fez com que ele desistisse do alpinismo esportivo e se concentrasse em algo mais profissional que pudesse justificar que continuasse escalando - o estudo do efeito da altitude no organismo humano. Em 1879 foi parar no Equador procurando grandes altitudes onde explorou, mapeou e escalou por 3 anos, gerando um clássico do montanhismo (que ainda não achei): Travels Among the Greats Andes of the Equator. Em 1880 junto com os irmãos Carrel conquistou o Chimborazo em uma escalada contínua de 16 horas. Foi a primeira escalada acima de 6100 metros em todos os tempos.
Fui dormir as 19:30 e apaguei. Com equipos já todos arrumados poderia descansar ao máximo. Acordei todo suado às 23:30, só os americanos falavam sem parar. Estes gringos escalariam a rota diretíssima no glaciar Thielmer que iria diretamente ao cume, com trechos de gelo de até 85 graus e muita passagem técnica. Só que esqueceram os parafusos no hotel e tiveram que negociar um, somente um único, com um guia, trocando-o por um grampão. Pouco equipo e muita vontade os levaria pra cima. Experientes, eram guias na califórnia. Os normais iriam pela Whimper, travessia e normal.
Saímos exatamente a meia noite. Começamos a direita do refúgio e logo engatamos na crista sudeste, que seguia por neve e rocha. Após 1h30 pusemos os grampões e alcançamos os 4 grupos que saíram antes. Andamos por muita pedra, gelo duro e mais pedras. Senti muito frio nos pés, tivemos dez graus negativos. Na verdade faltou um gorro a mais também.
Ficamos atrás de um grupo guiado. Não tinha neve e não tinha marcas nem pegadas, mas eles estavam muito lentos e resolvemos passar. Os quatro grupos ficaram pra trás e fomos na frente de todos. À esquerda podíamos ver as luzes dos americanos no glaciar. Logo dois guias que treinavam passaram todo mundo com um cliente austríaco que escalava muito rápido e desapareceram montanha acima.
Chegamos numa canaleta de gelo duro muito estreita e inclinada. Algo como a canaleta do Cambirela com gelo no meio, uns 15 metros. Subimos e fiquei realmente cansado e suado no topo. Eu estava muito bem, mais forte e disposto do que em qualquer das outras montanhas, mas a canaleta cansou bastante. Aí ficamos em dúvida, a noite escura como breu não deixava ver muito longe. À esquerda o gelo estava liso, não parecia ser por ali. Acima seguia por rocha. Como estávamos a 5600, seguimos reto já que disseram que tinha muita rocha na via. A rocha foi intercalando com um pouco de gelo e neve dura, sempre superficiais. Muita calma nesta hora. Não encordamos por absoluta impossibilidade de parar uma eventual queda. Fomos indo pra cima, devagar. Passamos por uma cascatinha de gelo e começamos a andar sobre placas de gelo dágua. Saímos para a esquerda e entramos numa rampa de neve toda esburacada, parecia corredor de avalanche ou de queda de pedras. Dava pra ver o vulto das paredes sul acima.
Procurávamos a travessia, mas não víamos marcas, luzes ou qualquer outro sinal. Todos os grupos desistiram abaixo da canaleta e os guias ligeiros sumiram acima. Logo fomos parar numa rampa de gelo duro muito inclinada a 5950 metros. O Martin atravessou a rampa e subiu procurando a rota. Eu e o Anastácio ficamos procurando por ali. A travessia deveria ser a 5900. Começou a clarear e consegui ver onde estávamos metidos, abaixo de montes de pedra sobre uma placa de gelo fino sobre mais rocha.
O Martin não achava nada mas insistia, aí o Anastácio escorregou e conseguiu travar. Tentou ficar em pé rápido e deslizou de novo. Ouvi um estouro e procurei pedra caindo, mas não vi nada. Outro estouro bem embaixo de mim. Era o gelo estourando sob o nosso peso. Gritamos pro Martin voltar e começamos a sair dali.
Estava muito tarde, não sabíamos onde era a travessia e o cume estava longe. Desistimos sem discutir. Melhor voltar para poder vir de novo. Iniciamos a descida tensos e logo a placa toda começou a estalar. Mais abaixo tinha neve que não vimos na subida. Descemos direto e percebemos o erro brutal: após a canaleta deveríamos ter desviado à esquerda até contornar as rochas e não seguir reto por cima delas. Naquele terreno instável demoramos demais e chegamos muito alto, errando a entrada para a travessia.
Na volta chegamos na canaleta e percebemos que na verdade haviam várias delas, uma do lado da outra. Procuramos a que parecia mais fácil e começamos a desescalar só com a piqueta de caminhada. Escorreguei e bati forte o joelho no gelo, ficando pendurado pelo braço na piqueta que milagrosamente me segurou. Me agarrei nas rochas ao lado e fiquei estabilizado. O Anastácio desceu jogando gelo em cima de mim e conseguiu terminar de descer pela rocha. Imitei os movimentos dele e finalmente chegamos na crista sudeste de novo. O Martin que havia descido antes só ria e tirava fotos.
Lá já começou a bater o arrependimento. Será que daria ? E se achássemos logo a travessia ? E se tivéssemos subido pela neve e não pela rocha ? E se... Mas de 'ses' não se faz uma escalada. Foi-se e pronto. O Martin estava inconformado e foi me contaminando. Ficamos olhando pra cima procurando e começou a parecer que havia uma rota. Logo apareceram os três que fizeram cume, emergiram da travessia abaixo de onde ficamos procurando a bendita. Chegamos muito perto, uns 50 metros acima somente. Porcaria. De qualquer forma do início da travessia ao cume seriam umas 4 horas e chegamos lá as 6:30, chegaríamos no cume muito tarde. Porcaria.
Desci pensativo e fotografando, as únicas fotos foram da descida. Chegamos no refúgio e o Anastácio descansou profundamente. O Martin queria tentar de novo naquela noite e ficou tentando me convencer. Não, seria muito desgastante e arriscado, concluímos depois de muito papo. Porcaria.
Escalamos mais do que no Cotopaxi, a rota foi mais dura, mais técnica e muito mais comprometida, chegamos na mesma altitude mas nada de cume. Porém nem só de cume vive o montanhismo. Às vezes quebrar a cara ensina muito mais, ainda que seja frustante. A experiência humana e o aprendizado são coroados pela oportunidade de ficar alguns instantes lá em cima, mas a viagem vale mais do que o ponto de chegada. Ainda que a chegada no cocuruto seja a meta, o objetivo é maior. De qualquer forma, porcaria.
Pegamos o carro as 13 horas e paramos para almoçar Cuy em Ambato (porco da guiné, um ratão feio e estranho - que eu não tive curiosidade em experimentar) e chegamos em Quito as 19 horas.
Fomos para Baños no dia 15 curtir a cidade, o ar denso e a região. A cidade fica num vale fantástico aos pés do Tungurahua. O vulcão estava quieto mas ainda era a atração da cidade. Fizemos um rafting classe IV muito bom (U$ 25), também tem muito mountain bike e muita caminhada. Jantei uma truta com camarão excelente por 5 U$.
Dia 17 fomos para Bogotá. O museu do ouro é fantástico. Com aquilo tudo lá, mais de 35000 peças de ouro de todos os tipos, formatos e finalidades, dá pra imaginar o que os espanhóis conseguiram pilhar e destruir, já que estima-se que mais de 90 % de tudo o que havia foi levado para a Europa. Tentamos ir para o litoral mas não daria tempo ou a passagem aérea era muito cara, então ficamos girando a cidade pra gastar tempo.
Um teleférico interessante proporciona boas vistas da cidade. No dia seguinte, fomos para Zipaquirá, 80 Km ao norte, para conhecer a catedral de sal - uma igreja com dois quilômetros de extensão construída dentro de uma mina de sal abandonada. Lá tinha igreja e espaço para convenções - muito usado pelo governo - nas profundezas de uma mina desativada, algo único no mundo. Do fim do mundo voltamos para Bogotá, arrumamos as tralhas e fomos para o aeroporto embarcar um dia antes sem passagem marcada, o que felizmente conseguimos.
De volta pra casa. Escalar no Equador foi uma experiência ímpar. Apesar do ambiente de montanha ser um pouco diferente, as escaladas são intensas. Faz falta o acampamento, o silêncio, pegar água no rio. Os refúgios são muito agitados, algo diferente pra mim mas comum pro bando de europeus que vai pra lá, onde escalada é sinônimo de pegar um teleférico, dormir num refúgio e escalar a noite. As montanhas são fantásticas, incrivelmente nevadas e cheias de gelo para a latitude zero. O país é simpático, está estável (por enquanto) e não muito caro. Numa área relativamente pequena encontra-se todo tipo de geografia, de praia a selva, passando por vulcões e alta-montanha, lagos e Galápagos, além de uma história rica e pouco conhecida. O povo é muito receptivo e tranquilo. Em alguns lugares ainda se fala Quíchua, o idioma nativo dos descendentes dos incas.
Valeu. Muito. Mesmo. Até a próxima.
Rafael Pina - rpina73@gmail.com
Fevereiro/2007
Fotos no Picasa.
Por que escalar Montanhas ?
Se você realmente precisa fazer esta pergunta, então, meu caro, não há resposta que irá fazê-lo compreender.
George L. Mallory, em resposta a um jornalista que o indagava.
|
Na escalada do Cotopaxi, Antisana |