sábado, 31 de outubro de 2020

Maratona solo

Correr uma maratona tem algo de especial. Tem alguma coisa nessa distância arbitrária que causa uma euforia no completamento do odômetro que é diferente de qualquer outra. Não basta correr 41 km, e correr 43 não aumenta muito o efeito da endorfina.

Nesse ano caótico de 2020 não haveria chances de correr uma maratona numa prova, mas também não queria passar o primeiro ano desde 2003 sem completar uma, então no dia 20 de setembro acabei fazendo uma maratona solo totalmente no improviso, e vou dizer, foi um aprendizado interessante.

A ideia estava lá e eu sai já com más intenções de completá-la, mas sem muita certeza pelo histórico recente de treinos. Então durante o percurso acabei decidindo completar a distância mítica. Uma coisa fantástica, sair pra correr sem rumo, só com um mapa na cabeça e no final ver que fechou certinho, que o abastecimento foi na estica no camelback, a música perfeita e o ritmo fluindo.

Saí de casa pela SC 110 rumo ao vale do São Francisco, desci pela terra batida perfeita e segui aquecendo sem forçar. Após uns 50 minutos com as pernas meio estranhas resolvi começar o protocolo corre/anda e nas subidinhas caminhava, ao invés de andar a cada intervalo de tempo pré-estabelecido. Até ali estava indo fazer o treino de corrida do desafio do MyXTRI Global Challenge, a prova virtual do Xtri World Tour que envolvia 14 segmentos e neste teria que completar 30 km e 1500 m de altimetria. Existe um fator de compensação para quem não tem acesso a grandes desníveis, então para cada 100 m que vc 'não sobe', precisa corre 1,5 km a mais. No mapa mental, eu faria uns 1000m de ascenção, logo já teria que correr 7,5 km a mais. 37,5 é muito perto de uma maratona, então a ideia nasceu.

Comecei a subir o morro da antena um tanto quanto travado, e ali achei que se conseguisse cumprir o desafio seria lucro. Fui negociando as subidas, trotando, andando, correndo onde dava e cheguei no topo com garoa e neblina e stairway to heaven tocando. Conclui que a coisa estava feia pra uma maratona, pois tinha completado apenas a meia e já estava destruído. Mas aí comecei a descer e fui soltando as pernas e pensanddo em como dobrar o que já tinha feito. 

No km 26 fiz a única parada num posto de gasolina e abasteci de líquidos repletos de açucares, uma paçoca e um pão de queijo e então segui para o morro do parapente, novo ponto turístico de Urubici. Fiz as contas de cabeça e decidi que não precisava subir tudo, então desci e cheguei no asfalto novamente com as contas erradas e precisei fazer o único vai-e-vem do percurso, passando um pouco da entrada do invernador e voltando para entrar na estrada de terra novamente.

Aos 39 km precisei fazer uma parada para xixi e então toquei sem mais parar nos morrinhos até em casa. Passei os 42 km e fui olhando o garmin até virar mais 200 m e então ergui os braços, soltei um berro e agradeci em silêncio pela oportunidade de poder fazer isso.

Foi fantástico negociar com as pernas e o percurso, manter a cabeça boa e positiva num dia cinzento e gelado, sem ninguém pelo caminho. Acho que apenas a experiência permitiu completar esse percurso dessa forma, é fantástico como saber o que vem pela frente nos faz dosar instintivamente o ritmo para que no final as pernas estejam ocas mas o percurso esteja completo. Nas contas de cabeça, seria a 46ª vez cumprindo a distância maratônica ou superior.

Uma maratona solo na chuva, bem feita e sem me arrastar, sem planejamento - inclusive no dia anterior saiu 4h40min de MTB pela serrra do corvo branco. Uma oportunidade de simplesmente fazer o que gosto, sozinho com meus botões, mas muito bem acompanhado.


Dois morrinhos no caminho

A volta ao mundo em Urubici

Alone in the mountain

Morro do parapente (em outro dia, claro)

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Quando o imponderável ataca

É incrível como podemos traçar analogias do esporte com outras atividades, como o esporte nos ensina e nos permite exercitar um conjunto que habilidades que é útil em outras situações. Especificamente no contexto desse post, resiliência e capacidade de adaptação. 

Nestes tempos únicos que estamos vivendo, a nossa capacidade de adaptação vem sendo cada vez mais exigida. Adaptação extremamente acelerada. E a resiliência idem. Fazer o melhor possível com o que temos e continuar, apesar de tudo, tirando sempre o melhor de cada situação. Hoje uma lembrança me chamou atenção. Foi a postagem da prova do Ironman de 2018.

Naquele ano eu achava que estava em algum ápice de performance (hoje, dois anos depois, continuo achando). As coisas encaixaram como nunca nos treinos e eu achei que seria a prova perfeita. Assim como no ano novo de 2020 achamos que seria o ano perfeito. Sempre achamos, temos que achar. Mas sabemos que imprevistos vão acontecer. Contra isso, não há como se preparar a não ser cultivando a capacidade de se adaptar a novas situações.

Na prova de 2018 eu saí da água com o melhor tempo até então, fiz uma transição tranquila e comecei a pedalar só focado em executar a prova perfeita. Porém, assim como em 2020, a prova mal começou e já foi tudo quase por água abaixo. Lá pessoas desprovidas de espírito inundaram a rodovia com pregos, em 2020 um vírus resolveu nos atacar.

Naquele Ironman a capacidade de reavaliar as metas e fazer tudo da melhor forma possível foram fundamentais para que eu tivesse das provas mais bem executadas até hoje. Não foi o melhor resultado, foi uma das melhores execuções, que trouxe um dos melhores resultados. E assim precisa ser 2020.

Em 2018 depois de furar dois pneus com as malditas tachinhas e pedalar furado, trocar a roda inteira no apoio da prova e contabilizar 21 minutos parados na primeira hora de pedal, reorganizei os objetivos. Obviamente saiu tudo dos trilhos, tive que impor um ritmo ao retomar que certamente não seria sustentável a prova toda, mas foi o jeito de me motivar a voltar ao jogo. O sprint cobrou o preço no final do ciclismo, mas eu precisava me manter motivado com alguma meta. Já em 2020, do nada mudamos nosso modo de trabalhar (para quem tem a sorte de poder trabalhar remotamente) e de uma hora pra outra estávamos trabalhando mais, de um jeito diferente, para re-sincronizar as coisas para que tudo entrasse nos trilhos.

Ter conseguido fazer a prova de 2018 é um dos aprendizados mais valiosos que o esporte me deu. Estar passando 2020 do jeito que estamos também será.

Apesar das agrura, só de poder fazer o que queremos, o que escolhemos, já precisamos estar agradecidos. Depois da lambança toda no ciclismo começar a maratona foi um privilégio. Assim como continuar 2020 está sendo.

E acima de tudo, assistir ao vídeo do amigo Fábio Lima me faz lembrar de que, como sempre, é a cabeça que manda. A mecânica da corrida já naturalmente feia está horrível, mas tem uns gritos  desesperados ali e as olhadas no relógio que denunciam o objetivo secundário que motivou a prova toda. Que assim seja em 2020: adaptar, reavaliar e continuar da melhor forma possível.

“Success is not final. Failure is not fatal. Is the courage to continue that counts.” Winston Churchill.

O sol nasce todo dia.
Como há 12 anos, o último domingo de maio é em Jurerê.
Neste não será diferente.
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Pra quem já perguntou, uma atualização: as outras melhores provas foram: Ironman Fortaleza 2016, Fodaxman 2018 e Challenge The Championship 2019 :-).