Correr uma maratona tem algo de especial. Tem alguma coisa nessa distância arbitrária que causa uma euforia no completamento do odômetro que é diferente de qualquer outra. Não basta correr 41 km, e correr 43 não aumenta muito o efeito da endorfina.
Nesse ano caótico de 2020 não haveria chances de correr uma maratona numa prova, mas também não queria passar o primeiro ano desde 2003 sem completar uma, então no dia 20 de setembro acabei fazendo uma maratona solo totalmente no improviso, e vou dizer, foi um aprendizado interessante.
A ideia estava lá e eu sai já com más intenções de completá-la, mas sem muita certeza pelo histórico recente de treinos. Então durante o percurso acabei decidindo completar a distância mítica. Uma coisa fantástica, sair pra correr sem rumo, só com um mapa na cabeça e no final ver que fechou certinho, que o abastecimento foi na estica no camelback, a música perfeita e o ritmo fluindo.
Saí de casa pela SC 110 rumo ao vale do São Francisco, desci pela terra batida perfeita e segui aquecendo sem forçar. Após uns 50 minutos com as pernas meio estranhas resolvi começar o protocolo corre/anda e nas subidinhas caminhava, ao invés de andar a cada intervalo de tempo pré-estabelecido. Até ali estava indo fazer o treino de corrida do desafio do MyXTRI Global Challenge, a prova virtual do Xtri World Tour que envolvia 14 segmentos e neste teria que completar 30 km e 1500 m de altimetria. Existe um fator de compensação para quem não tem acesso a grandes desníveis, então para cada 100 m que vc 'não sobe', precisa corre 1,5 km a mais. No mapa mental, eu faria uns 1000m de ascenção, logo já teria que correr 7,5 km a mais. 37,5 é muito perto de uma maratona, então a ideia nasceu.
Comecei a subir o morro da antena um tanto quanto travado, e ali achei que se conseguisse cumprir o desafio seria lucro. Fui negociando as subidas, trotando, andando, correndo onde dava e cheguei no topo com garoa e neblina e stairway to heaven tocando. Conclui que a coisa estava feia pra uma maratona, pois tinha completado apenas a meia e já estava destruído. Mas aí comecei a descer e fui soltando as pernas e pensanddo em como dobrar o que já tinha feito.
No km 26 fiz a única parada num posto de gasolina e abasteci de líquidos repletos de açucares, uma paçoca e um pão de queijo e então segui para o morro do parapente, novo ponto turístico de Urubici. Fiz as contas de cabeça e decidi que não precisava subir tudo, então desci e cheguei no asfalto novamente com as contas erradas e precisei fazer o único vai-e-vem do percurso, passando um pouco da entrada do invernador e voltando para entrar na estrada de terra novamente.
Aos 39 km precisei fazer uma parada para xixi e então toquei sem mais parar nos morrinhos até em casa. Passei os 42 km e fui olhando o garmin até virar mais 200 m e então ergui os braços, soltei um berro e agradeci em silêncio pela oportunidade de poder fazer isso.
Foi fantástico negociar com as pernas e o percurso, manter a cabeça boa e positiva num dia cinzento e gelado, sem ninguém pelo caminho. Acho que apenas a experiência permitiu completar esse percurso dessa forma, é fantástico como saber o que vem pela frente nos faz dosar instintivamente o ritmo para que no final as pernas estejam ocas mas o percurso esteja completo. Nas contas de cabeça, seria a 46ª vez cumprindo a distância maratônica ou superior.
Uma maratona solo na chuva, bem feita e sem me arrastar, sem planejamento - inclusive no dia anterior saiu 4h40min de MTB pela serrra do corvo branco. Uma oportunidade de simplesmente fazer o que gosto, sozinho com meus botões, mas muito bem acompanhado.
Dois morrinhos no caminho |
A volta ao mundo em Urubici |
Alone in the mountain |
Morro do parapente (em outro dia, claro) |